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O CARA DOs CORREs

mais velho entre os mortos, Calau era 'o correria' da vila

O manobrista Ricardo Vilas Boas Silva não planejava quase nada. Quase, porque a ida à barbearia toda sexta-feira era tão certa quanto a festa que fazia em caso de vitória pro Bahia ou pro Corinthians, seus times do coração. “Negro dos traços bem finos”, como define o irmão, o agente de saúde Linsmar Vilas Boas, 40 anos, Ricardo fazia sucesso entre as mulheres e acreditava que a vida tinha que ser vivida dia após dia. Tão querido entre as figuras femininas da Vila Moisés   região periférica do bairro do Cabula, em Salvador, onde nasceu e foi criado , que se atrapalhava na hora de “administrar” os namoros.

“Não sei como ele não tem hoje uns 12 filhos”, brinca Linsmar, com um sorriso no rosto, sem disfarçar a admiração. O orgulho, explica o agente de saúde, se justifica porque “Ricardo sempre teve boa índole”. Ele conta, ainda, que o manobrista concluiu o ensino médio aos 17 anos, na Escola Estadual Professora Maria Bernadete, no mesmo bairro, e nunca deu qualquer trabalho quanto aos estudos. Filho de um pedreiro e uma cabeleireira, sempre foi o queridinho das três irmãs, com quem se uniu ainda mais há dez anos, depois que a matriarca morreu, aos 53, após um câncer de mama.

Embora seja filho de outro pai, Linsmar lembra que sempre foi o porto seguro do caçula da família. “Ele sempre me viu como segurança de tudo, sempre confiou muito em mim e nós tínhamos a melhor relação que dois irmãos poderiam ter. Nunca brigamos”. O jeito gozador de ser e levar a vida era a marca registrada do namorador da vila, ou Calau, como Ricardo era conhecido por todos. Gostava de colocar apelido em todo mundo, recorda o irmão mais velho. Nas horas vagas, era certo ir à praia, assistir a jogos de futebol e, como todo bom pagodeiro, o caçula não abria mão de um paredão  festa onde acontecem disputas de som automotivo.

Gostava tanto que, há cinco anos, mesmo sem habilitação, pegou a moto de Linsmar e foi até um paredão no final de linha do bairro. “Fui acordado por um tenente da polícia, duas da madrugada, perguntando onde estava minha moto. Vi que não estava na garagem. Quando cheguei lá, ele me olhou com aquela cara de criança que fez coisa errada e disse: ‘pô, velho, calma, não me faça passar vergonha’”.  

 

Foi poupado do sermão em público, conta o mais velho, que lembra exatamente de como o caçula estava neste dia, um domingo. “O cabelo estava grande, na altura do ombro, e ele usava todo enrolado. Sobrancelha feita, aliás, a sobrancelha estava sempre impecável. O ritual dele era aquele banho demorado, depois passava um creme misturado com glicerina porque, segundo ele, soltava os cachos. Não era à toa o sucesso que ele fazia com as meninas. Eu ficava abismado, ele já chegou a namorar duas irmãs e uma prima da mesma família”.

o cara dos corres

E não era de ficar parado, não, “quando descansava, era de pé”. Assim que concluiu o nível médio, começou a correria para conseguir trabalho. Ainda adolescente, ajudava o pai nas obras como pedreiro. Fazia um pouquinho de cada coisa, mas não deixava de se virar para ter “um trocado”. Também já ganhou a vida como estofador, ofício que aprendeu com o irmão Linsmar. E foi assim até conseguir o emprego de carteira assinada como manobrista, em 2013, já aos 25. E seria esta a realização de um dos sonhos da cabeleireira Edna de Jesus, estivesse viva, garante o primogênito.

 

Dos cinco filhos que teve, a cabeleireira costumava repetir que Ricardo era o que mais precisava de atenção. “Porque ele vivia o hoje, fazia o que tinha que fazer hoje e não ligava muito de planejar as coisas, fazer grandes planos. Minha mãe era muito mais ligada a ele do que a nós quatro”, pontua o estofador. 

Mesmo depois que a mãe morreu, além da orientação de Linsmar e das outras três irmãs, o caçula nunca deixou de ser acompanhado de perto pelo pai, o pedreiro Nilson Sena Silva, com quem sempre se relacionou bem. “Ninguém nem conseguia ter qualquer desentendimento com ele, porque era contagiante demais. Falava qualquer besteira e todo mundo já ria”. Tomar banho, na linguagem de Ricardo, era “usar um banho”. Quando ele dizia que ia “fazer uns corres”, todos mundo já sabia: ia correr atrás de um bico como pedreiro ou estofador. “Porque ele dizia que homem não toma, usa. Tinha essas coisas com ele, essas brincadeiras de meninão”.

nasce um pai

A alegria só perdeu espaço para o desespero quando Ricardo descobriu que seria pai, aos 23 anos e, naquela época, sem emprego certo. O dia do nascimento de Evelyn Vilas Boas, primeira filha do manobrista, foi o dia de maior angústia de sua vida, conta Linsmar, que até então nunca tinha visto o mais novo chorar. “Ela nasceu no dia 11 de novembro de 2011 e ele ficou muito, mas muito perdido. Não sabia o que fazer, eu fui quem orientei ele neste período”, comenta. Mas logo pegou jeito com o novo papel e, segundo irmão, era um ótimo pai para a menina, fruto de um relacionamento que durou dois anos. Depois do término, no entanto, continuou o convívio com a filha.

 

Não muito tempo depois, Ricardo engravidou uma segunda mulher, com quem teve Luiz Henrique, em dezembro de 2013. “Quando o segundo nasceu, ele já sabia como ser pai, foi muito mais tranquilo. Mas ele não chegou a ficar com a mãe do menino. Logo separaram e a criança passou a morar na região da Bonocô, mas ele ia ver com frequência”.  

Ricardo vivia uma vida simples mas feliz. Gostava do lugar onde morava, do trabalho em que estava há dois anos e não abria mão de uma partida de dominó “com os parceiros”, ao chegar do serviço. Nunca negou seus amigos de infância: muito pelo contrário, fazia questão de dar atenção aos “irmãos que escolheu”. O risco de parar para conversar, ou mesmo cumprimentar os amigos, era de conhecimento do manobrista, que sabia do envolvimento de alguns deles com o tráfico de drogas. “Ele era muito próximo àqueles rapazes, ficava ali no meio o tempo todo, quando ele chegava do trabalho parava ali, até eu ficava lá”.

última parada

Uma das partidas de dominó, no entanto, foi interrompida por uma ação da Polícia Militar na Vila Moisés. Era início da madrugada do dia 6 de fevereiro de 2015, uma sexta-feira. Ricardo, na época com 27 anos, foi morto com pelo menos sete tiros disparados por militares das Rondas Especiais (Rondesp). Linsmar assistiu à cena de horror, como assim descreve, mas sem saber que o irmão estava ali. Estava escuro. Os faróis das viaturas eram os únicos pontos de luz.

Além do caçula dos Vilas Boas, outros 11 jovens, que tinham entre 17 e 27 anos, foram assassinados na ação. Outras quatro pessoas ficaram feridas. Das vítimas fatais, o manobrista era o mais velho. “Eu não digo que todos eram inocentes. Mas alguns eram completamente inocentes. Se ele [Ricardo] fosse envolvido com o tráfico, eu não ia tapar o sol com a peneira. Mas não, ele estava ali, assim como eu, que sou funcionário público, poderia estar”.

O agente de saúde conta que até hoje sente uma lacuna pela falta do irmão, mas que aprendeu a lidar com a ausência de Calau de um jeito mais tranquilo devido à descendência muçulmana da família. “Não é que a gente comemore a morte, mas nós lidamos com mais frieza neste sentido, entendemos que a morte faz parte do nosso papel aqui na terra. Eu sabia que eu tinha que viabilizar o que fosse preciso para enterrá-lo, e foi o que fiz”.
 


Ricardo e seis amigos de infância foram enterrados na manhã de sábado, dia 7 de fevereiro de 2015, no Cemitério do Campo Santo, no bairro da Federação.  Outras seis vítimas foram veladas no Cemitério Quinta dos Lázaros, no mesmo dia. Pelo menos cinco ônibus saíram da Vila Moisés levando centenas de amigos e vizinhos dos rapazes. “Não é que eu não sinta, eu sinto muito, eu sempre quis ter um irmão homem e ele era tudo pra mim”, garante Linsmar. Embora a versão da PM, de que o manobrista e os amigos se preparavam para explodir uma agência bancária, seja refutada pelas famílias das vítimas, os nove policiais envolvidos na ação foram absolvidos pela Corte baiana.

Evelyn e Luiz Henrique Vilas Boas, filhos de Ricardo, hoje com 7 e 4 anos, respectivamente, sequer sabem da existência do pai. Por decisão da família, acreditam serem filhos de Linsmar. As fotos, roupas e outros objetos do caçula estão guardados na casa da Vila Moisés, de onde a família se mudou.  “São meus filhos agora. Quando eles crescerem, vou contar tudo, explicar direito o que aconteceu e apresentar lembranças, mas, por enquanto, é melhor que eles não sofram com isso”.

Ao andar pela Vila Moisés, não é difícil encontrar alguém que tenha tatuado no corpo “Ricardo Vilas Boas Silva”. A homenagem coletiva foi feita a Calau por pelo menos 20 amigos, dias depois da madrugada daquele 6 de fevereiro. Além dos amigos, Ricardo deixou o pai, um irmão, três irmãs, dois filhos, e dezenas de camisas de seus outros dois amores: Bahia e Corinthians.

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Linsmar Vilas Boas - Irmão
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Fotos: Arquivo Pessoal

sobre nós

Agradecimentos: Arisson Marinho, Bruno Wendel, 

Clarissa Pacheco, Jorge Gauthier, Linda Bezerra,
Mariana Rios e toda equipe do Jornal Correio.

Alba Freitas, Davi Gallo, Edson Silva,
Henrique Oliveira, Kênia Borges, Linsmar Vilas Boas,
Lílian Lima, Mariana Possas, Ury Silva e Vilma Reis.


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O especial Gatilho foi produzido sob a orientação do 
Prof. Ms. Laércio Torres de Góes.

Reportagem e crônica: Tailane Muniz
Entrevista: Dener Gonçalves, Luiza Fabiane
e Tailane Muniz
Fotografia: Arquivo/Jornal Correio
Vídeo: Márcio Caetano
Edição de vídeo: Márcio Caetano
Logomarca: Jeferson Almeida
Edição de áudio: Tailane Muniz
Produção: Dener Gonçalves, Luiza Fabiane

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Criação e desenvolvimento web: Tailane Muniz

Edição web: Tailane Muniz

Coordenação-geral e conceito: Tailane Muniz

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