
a VILA
a vila não é mais a mesma. e dá para entender o porquê.
Os menos corajosos teriam recuado, de cara, nos primeiros passos Vila Moisés adentro. Os olhares de desconfiança inibem, e até assustam, quem nunca esteve ali. Não é necessário se aproximar de alguém ou fazer qualquer pergunta acerca da Chacina do Cabula para causar estranhamento aos moradores daquela região. Basta não ser de lá.
Ali, onde moram quase três mil pessoas, quem é de fora pode até ser bem vindo – desde que esteja acompanhado de alguém que tenha conhecimento com os traficantes do local. O tráfico existe ali, sim, e me pareceu ágil. Antes mesmo de chegar à vila, ainda nas imediações, a movimentação de alguns jovens surpreendeu até um dos líderes comunitários da região, Linsmar Vilas Boas, que nos para a gravação de uma entrevista.
“Ei, calma, eles estão comigo", gritou nossa fonte a um dos rapazes que, apressado, parecia incomodado com nossa presença. O coração deu aquela apertada, a mão gelou e o medo me pertenceu pelo tempo ridículo do piscar dos olhos. Ainda bem. Porque chegar até o campinho de futebol mal acabado era uma missão e, àquela altura, não me cabia arrego.
Apenas uma rua estreita e íngreme nos separava da área aberta, cercada de mata, onde tudo aconteceu, há três anos e quatro meses – quando os 88 disparos acertaram fatalmente 12 rapazes e causaram danos visíveis ainda hoje. As casas são todas grudadinhas, como manda o figurino das áreas mais periféricas de Salvador. O que fugia à tradição da favela era o silêncio. Parecia até que todo mundo sabia que estaríamos ali, àquela hora, e o porquê.
E não era nem que já tivesse anoitecido. Ainda era dia. Meio-dia. Um dia sem crianças, adultos, velhos ou mesmo os jovens à vista. Olhando para cima dava para ver uma ou outra pessoa na janela – mas só até elas notarem que haviam sido percebidas por nós. Causou estranheza não ter moradores a nosso alcance.
Porque se tem uma coisa fácil de encontrar no gueto é gente. Muita gente. Gente de todo tipo. Linsmar, que se mudou do local logo após perder o irmão, explicou que a vila nunca mais foi a mesma. E nem será. "Vocês só estão descendo porque estão comigo. Mas podem ficar tranquilos, não há o que temer. A não ser que a polícia chegue aí atirando. Mas sobre esse fato [a chacina] ninguém fala. As pessoas não vão falar".
No minuto seguinte, dois rapazes em uma moto sinalizaram a Linsmar que estariam observando o nosso trabalho ali. Ainda na esperança de alcançar um morador, cheguei a considerar falar com eles. Só depois entendi o recado. Já no local exato, de frente para a lápide colocada ali pelo grupo Reaja ou Será Morta, Reaja ou Será Morto, pensei naqueles 12 que tombaram após suposto confronto.
Lembrei dos depoimentos aos quais tivemos acesso dias antes, por telefone. Relatos que manifestam o inconformismo unânime de pessoas que até hoje se perguntam: se eles eram assaltantes de banco, por que não prenderam? Diante da área de várzea, mesmo não tendo filhos, tentei vislumbrar o sofrimento das mães dos 12. Daquela vila. Até respirei aliviada de não ter encontrado nenhum outro familiar. E Nem poderia, já que todos se mudaram, segundo Linsmar, após ameaças.
"São tantas casas vazias. As pessoas tentam vender, não conseguem, e saem mesmo assim. As famílias [dos mortos] foram embora faz tempo. Na época, eles [PM] passaram mais de 20 dias consecutivos ameaçando as pessoas. Ninguém ficou. Ninguém aqui fala sobre isso, não dá", acrescenta, após minha observação de como o local parece inabitável.
Àquela altura, final de tarde, os trabalhos estavam concluídos. Mas o momento de maior alívio foi, também, de certa angústia. Isso porque notamos a presença de policiais militares das Rondas Especiais (Rondesp), todos armados, aparentemente em busca de alguém.
A mesma Rondesp que alegou ter matado após resistência. Eu não sei o que senti, mas não foi algo bom. Acompanhados do líder comunitário, retornávamos pela ladeira. Não sei o porquê, mas enquanto olhava para trás, na direção dos agentes, pensei: se algo acontecer, eu estou aqui e vou ver tudo. Pela distância que tomávamos, já não dava para ver tanto. Mas se na madrugada de 6 de fevereiro de 2015 o único ponto de iluminação era o dos faróis das viaturas, eu ainda tinha a claridade do sol a meu favor.
Em nossa contramão, eis que, pasmem, surge uma moradora. Uma mulher que aparentava uns 50 anos. "O que é isso aí?", perguntou a Linsmar, com quem demonstrou certa intimidade. "O que nós vemos todos os dias. Acho que você não vai conseguir ir pra casa agora, melhor descer depois", respondeu o agente comunitário, em tom de tranquilidade.
Parada ali, a mulher sorriu conformada, enquanto tomamos nosso rumo. Era mais uma tarde normal na Vila Moisés. Que não é mais a mesma. E deu para entender o porquê.