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CRIME SEM CASTIGO?

Não era nem que a Vila Moisés fosse o melhor lugar do mundo para se viver: os caminhos até lá sempre foram estreitos e íngremes. Também conhecida por Guine  em referência às estações de eletricidade que cortavam a área entre o fim dos anos 70 e início dos anos 80, quando os primeiros moradores chegaram  , a vila abriga pelo menos três mil pessoas e é pouco iluminada. Um campo de futebol mal acabado é a principal referência do terreno, que fica em uma região periférica do Cabula, não tão próximo ao Centro de Salvador. Para moradores como o agente de saúde Linsmar Vilas Boas, 40 anos, as dificuldades de viver no lugar, no entanto, eram pequenas perto do privilégio, diz ele, de poder compartilhar a vida com os vizinhos, como uma grande família.

 

Isso mudou na madrugada de 6 de fevereiro de 2015. Desde então, a Vila Moisés nunca mais foi a mesma. Talvez o rosto sereno de Linsmar não seja tão familiar quanto tantos outros que estamparam as páginas de jornais na manhã seguinte àquela madrugada, quando familiares de 12 jovens moradores da Vila Moisés fizeram fila no saguão do Hospital Geral Roberto Santos (HGRS), no mesmo bairro, em busca da identificação dos rapazes, mortos horas antes.  O agente de saúde, que também é líder comunitário, não estava entre eles porque já sabia que precisaria viabilizar os enterros das crias da vila, independente de quem fossem. Por razões naturais da vida, como ele mesmo define, o manobrista Ricardo Vilas Boas, 27, irmão de Linsmar, estava entre as vítimas do que ficou conhecido como Chacina do Cabula.

Além de Ricardo, que era o caçula da família e mais velho entre os mortos, também morreram Adriano de Souza Guimarães, 21; Jeferson dos Santos, 22; João Luís Pereira Rodrigues, 21; Bruno Pires do Nascimento, 19; Tiago Gomes das Virgens, 18; Caíque Bastos dos Santos, 16; Evson Pereira dos Santos, 27; Agenor dos Santos Neto, 19; Natanael de Jesus Costa, 17 e Rodrigo Martins Oliveira, 17. Eles tombaram durante uma ação das Rondas Especiais da Polícia Militar (Rondesp/Central), ali mesmo, no campo de futebol mal acabado que usavam para jogar bola quase todos os dias, especialmente à noite  quando a iluminação era precária, segundo moradores. Outros quatro jovens sobreviveram à ação. Três anos e quatro meses depois, no entanto, ainda existem duas versões para o caso. 

 

E se a tradição judaico-cristã diz que Moisés foi quem libertou o povo hebreu da escravidão no Antigo Egito e abriu o Mar Vermelho para a salvação daquela gente, a vila que leva o nome do profeta de Israel, por mórbida ironia, teve sua própria representação de mar vermelho. Naquele campinho de futebol, cada jovem foi baleado pelo menos sete vezes. As informações são dos laudos cadavéricos produzidos pelo Departamento de Polícia Técnica (DPT) da Polícia Civil, ao qual Gatilho teve acesso. O mesmo laudo também indicou que apenas quatro, dos 12, tinham sinais de pólvora nas mãos; que a maioria dos tiros foram dados a uma distância média de 1,5 metro; que os disparos foram feitos de cima para baixo e que as vítimas tinham ferimentos nas mãos e antebraços. 

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Tiros dados a menos de 1,5

Alguns dos disparos foram feitos a uma distância - entre 1 e 1,5 metro - considerada curta por especialistas 

Tiros nas mãos e antebraços

Laudos cadavéricos indicaram perfurações comuns a quem, em 'ato-reflexo', tentou se defender 

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Cima para baixo

Perícias indicaram algumas das vítimas estavam em posição inferior aos atiradores quando foram alvejadas

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Pelo menos 88 tiros

Laudo mostrou que, de um total de 143 tiros disparados pelos PMs, 88 atingiram vítimas. A média é de sete tiros por pessoa

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Pólvora nas mãos

Apenas quatro, dos 12 mortos, tinham sinais de pólvora nas mãos - o que pode indicar o uso de armas de fogo

terceira que mais mata
A versão sustentada pela PM é de que os mortos compunham uma "quadrilha especializada em assaltos e bancos" e se preparavam para explodir uma agência na Estrada das Barreiras, uma das principais avenidas do Cabula. A outra versão é de que a maioria dos mortos eram jovens inocentes e foram executados pelos nove policiais que participaram da ação. E se os lados não encontram um denominador comum para o que aconteceu naquele 6 de fevereiro, o Atlas da Violência, pesquisa realizada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) e Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), endossa que, em 2015,  os rapazes mortos entraram numa estatística que aponta a morte de 299 jovens, nas mesmas circunstâncias, somente na Bahia.

 

O estado encerrou aquele ano em terceiro lugar no ranking nacional de mortes em decorrência de intervenção policial, ficando atrás somente do Rio de Janeiro e São Paulo, que registraram 645 e 848 mortes, respectivamente. Os dados estão disponíveis no Atlas da Violência 2018, que mostra, ainda, que a corporação baiana se manteve na mesma posição no ano seguinte. Em 2016,  último ano avaliado pelo estudo, com 457 pessoas assassinadas — sendo a maioria homens jovens (com idade entre 15 e 29 anos)  —, a Bahia continuava na cola de São Paulo, que registrou 856 mortos, e Rio de Janeiro, o líder nacional de mortes em ações policiais, com 925 casos. 

Por meio de nota, a Secretaria da Segurança Pública do Estado da Bahia (SSP-BA) disse, no entanto, que o estado registrou diminuição de 12,6% no índice de mortes violentas em 2018. Conforme o secretário da Segurança Pública, Maurício Barbosa, o ranking do Atlas da Violência coloca as mortes violentas no mesmo patamar de assassinatos praticados por criminosos e os "casos em que os policiais, quando atacados, reagem proporcionalmente em legítima defesa deles e da sociedade". Segundo a SSP, se comparado a 2016, a Bahia alcançou a redução de 5,2% nas mortes violentas. "De 2015 para 2016, em Salvador, os crimes contra a vida caíram 3,1% e, no estado, houve um aumento de 12,4%", diz a pasta. 

De acordo com o atlas, 76,2% das vítimas mortas em situações de violência são negras. "É como se, em relação à violência letal, negros e não negros vivessem em países completamente distintos. Em 2016, por exemplo, a taxa de homicídios de negros foi duas vezes e meia superior à de não negros, sendo 16,0 contra 40,2 por 100 mil habitantes", diz o texto da pesquisa. Na avalização da SSP, com relação à morte de jovens, os municípios devem propor mais ações sociais "como o Mais Futuro e o Partiu Estágio, que oferecem novas perspectivas". Já sobre os negros morrerem mais, a pasta informou que está usando a faixa da população negra do estado (76%, maior do país), para analisar os dados do período divulgado.

Conforme apurou a equipe de reportagem, com base em casos divulgados pela imprensa, 21 policiais foram mortos em 2015, sendo que quatro destes estavam de serviço. Em 2016, o número foi de 22 agentes assassinados, mas não há a informação de quantos deles vestiam farda quando foram mortos. Gatilho tentou dados oficiais dos últimos três anos, junto à corporação, mas não obteve retorno.

crime sem castigo?

Linsmar tinha visão privilegiada da Vila Moisés do andar de cima de sua casa. De lá, dava pra ver o campo de futebol, as principais vielas e a escadaria de degraus imperfeitos do lugar. Era madrugada de 6 de fevereiro de 2015, uma sexta-feira, e o som da televisão, que exibia a programação da TV aberta, por um momento, se confundiu com os gritos de pedidos de socorro. A maior parte da vila, àquela hora já adormecida, não sabia que acordaria inundada por um mar de sangue. "Eu preferia não ter visto ou ouvido. Porque foram muitos, muitos tiros. Os tiros se alternavam com os gritos, com minha TV. Foi uma caçada que durou quase duas horas". Isso significa dizer que o barulho dos tiros ecoou na Vila Moisés por um espaço de tempo suficiente para ir e voltar ao Centro da cidade. 

Ele lembra que, como de costume, o local estava escuro. "O único ponto de luz eram os faróis das viaturas, eram 11 viaturas. Eles saíram caçando, pegando quem viram pela frente. Alguns pegaram dentro de casa, outros na frente da porta", recorda o agente de saúde, alegando que a maior parte dos mortos eram inocentes. "Não tem nem como dizer que estavam na hora errada e no lugar errado. Era a porta de casa, poderia ser eu", ponderou ele, que só soube da morte de Ricardo quando amanheceu. 

"Você olhar para a cara do seu executor, saber que você vai ser morto, deve ser uma coisa sem igual. Meu irmão e todos os outros viveram isso. Eles [PMs] olhavam pra onde iam atirar e apagavam os faróis".

                                             
                                                           

                                                                      Casas da vila ficaram marcadas por tiros

Os algozes, nas palavras de Linsmar, são o subtenente Júlio César Lopes Pitta, o sargento Dick Rocha de Jesus — que foi baleado de raspão na cabeça durante a operação , e os soldados Robemar Campos de Oliveira, Antônio Correia Mendes, Sandoval Soares Silva, Marcelo Pereira dos Santos, Lázaro Alexandre Pereira de Andrade, Isac Eber Costa Carvalho de Jesus e Lúcio Ferreira de Jesus. Todos foram denunciados pelo Ministério Público do Estado da Bahia (MP-BA), que avaliou os dados dos laudos cadavéricos como indícios de execução. Os nove militares, no entanto, foram absolvidos, cinco meses depois, em decisão da juíza Marivalda Almeida Moutinho. 

 

A denúncia feita pelo MP-BA, em junho daquele ano, havia sido acatada pelo juiz Vilebaldo José de Freitas Pereira, titular da 2ª Vara do Júri. No entanto, Pereira entrou de férias e foi substituído por Marivalda, que proferiu a sentença em 24 de julho de 2015. Procurado, o Tribunal de Justiça do Estado da Bahia (TJ-BA) informou, por meio de sua assessoria, que "a sentença foi executada de acordo com os trâmites legais" e que os magistrados, bem como a Corte, não comentariam o caso.  Em entrevista a Gatilho, o promotor responsável pela denúncia do MP-BA, Davi Gallo Barouh, no entanto, afirmou que a absolvição da magistrada ocorreu em tempo inusual para os padrões da Justiça brasileira, de forma ilegal e que deve ser revertida.

"A lei não prevê absolvições como a que ela aplicou ao caso, pois deveria ter deixado o processo ter seu andamento normal. É  uma absolvição ilegal".

"Os réus já haviam sido citados para oferecer resposta à acusação. Eu pedi o recurso de apelação ao TJ-BA e, ao mesmo tempo, solicitei a federalização do processo", completou Gallo. O pedido de federalização, cuja ideia é que o julgamento saia da esfera estadual  onde o caso foi arquivado , e passe a ser avaliado pela Justiça Federal, segue em tramitação. O julgamento da solicitação, que deveria ter sido realizado em dezembro de 2017, acabou adiado. Embora, segundo a assessoria do Superior Tribunal de Justiça (STJ), sequer haja previsão para uma nova data, Davi Gallo diz acreditar na federalização do caso.

 

"Houve grande desrespeito aos direitos humanos. Além de ser tendenciosa a sentença da juíza. Antes de sair, [Rodrigo] Janot [ex-procurador-geral da República] deu parecer favorável e encaminhou o meu pedido [de federalização]. Acredito, sim, que vai ser federalizado", salientou. Gallo não comentou as ameaças, diretas e indiretas, que teria sofrido ao longo desses três anos à frente do caso. "Além dos laudos, nós também embasamos a acusação em outras provas, inclusive, testemunhal. Ali não tem jeito. Foi uma execução coletiva, sumária. Embora os acusados falem que as vítimas estavam todas armadas, a realidade mostrou outra coisa", concluiu.

A equipe de Gatilho procurou o coletivo Reaja ou Será Morta, Reaja ou Será Morto, liderado pelo militante Hamilton Borges, um dos responsáveis por organizar manifestações e eventos cobrando a federalização do caso, mas o grupo não quis se pronunciar. "Nossa luta não é simbólica, e muito menos a morte daqueles jovens. As famílias precisam de ajuda, e a nossa atuação vai em torno delas. Temos compromisso com o nosso povo, portanto, não utilizamos da pauta para benefício próprio", disse, por meio de mensagem, um dos integrantes do grupo.


 

 

 

 

 

 

 

 

                                                 

                                                              Ato marcou 3 anos da ação da PM e cobrou federalização do caso

tudo mudou

"A igualdade não existe, eu não sei em que situação dá para usar a palavra igualdade. E reparação? Reparar o quê? Como é que repara a minha história? Como é que repara a demonização da minha cor, da minha religião? Quem vai reparar isso? Aí a gente volta para a chacina, ou para a 'ação policial', como a magistrada colocou em sua sentença, e pergunta quem, verdadeiramente, puxou o gatilho. Às vezes eu fico me perguntando se não fui eu quem puxou aquele gatilho", reflete Linsmar.

 

"Porque aqueles policiais, que também são negros, eu não sei se eles são os verdadeiros responsáveis ou se são apenas um reflexo", completa o líder comunitário, que cria os dois sobrinhos, filhos de Ricardo. As crianças sequer sabem da morte, ou melhor, da existência do pai. "Eu preferi não contar, as coisas dele eu guardo na casa em que morávamos na época.

As camisas dos times dele, as fotos, tudo. Para meus sobrinhos, é como se ele nunca tivesse existido. Mas um dia eu vou contar tudo, claro". 

As noites, ou mesmo as tardes, não são as mesmas na Vila Moisés. Se antes as crianças faziam questão de se espalhar na rua, agora elas optam por não sair de casa. Os jovens até jogam bola, mas só se for no campo de futebol próximo à Estrada das Barreiras, e até determinado horário. Os mais velhos também já não são vistos com tanta frequência jogando dominó na porta de suas casas. Tudo mudou. Os familiares das vítimas se mudaram, também.

 

"A vila nunca mais foi a mesma, não tem como. É um vazio enorme que a gente sente. No dia seguinte ao fato, eles [a PM] vieram aqui e arrombaram portas, bateram na cara de pessoas e ameaçaram. Isso aconteceu por pelo menos 20 dias e eu não tenho motivos para mentir. Assim como não menti que tinha gente envolvida no tráfico, sim, mas que mais da metade era inocente e que ninguém merece ser abatido. Até hoje nós vivemos apreensivos. A polícia nunca vai chegar lá para ser bem recebida, para representar segurança", lamentou Linsmar. 

 

Único familiar que ainda mora na região, ele conta que os hábitos são outros. "Às 19h não tem mais ninguém na rua. Mas medo maior, mesmo, é quando dá 2h. Se a polícia chega aqui esse horário, se ouvimos o barulho deles chegando a gente já se apavora, porque já está no nosso inconsciente". Dos poucos moradores vistos no local, apenas um deles aceitou falar, sob a condição de não ter sua identidade revelada. "Tocar nesse assunto é perigoso até para vocês que estão aqui. Não foi uma, nem duas pessoas. Muita gente assistiu, de suas janelas, eles arrastarem os meninos e jogarem ali. A verdade é que tudo isso foi uma vingança dos policiais.", disse, fazendo referência a uma ação da mesma Rondesp, três semanas antes, quando um sargento foi baleado no pé e dois jovens acabaram mortos. Esta versão, no entanto, nunca foi considerada pelas investigações. 

"Organizei futebol para muitos deles jogarem. Um que sobreviveu me contou que viu o cano da arma na direção do rosto e fechou os olhos. Ele disse: 'só ouvi o barulho dos tiros e achei que já estivesse morto'. Felizmente, ele foi baleado em lugares superficiais e está aí para contar a história. Quer dizer, não aqui, porque senão eles [PMs] já tinham voltado para derrubar". Ainda segundo a testemunha, até pouco tempo atrás, o sobrevivente Arão de Paula Santos, 23, que foi baleado na perna e chegou a ser detido, ainda morava na vila. "A avó de Arão foi a que faltava sair. Não dava mais, eram muitas ameaças. Não sei como eles ainda ficaram aqui até esse ano. Porque todo mundo sabe que não tem essa, eles matam mesmo".

recomeço

Se para Linsmar, que segue a tradição muçulmana e acredita na morte como "parte da vida", a partida do irmão não é mais um motivo de choro, para os familiares de algumas das outras vítimas o recomeço parece cada vez mais distante. Por telefone, a mãe-avó do adolescente Natanael, a costureira Marina de Oliveira, 60, contou a Gatilho que nunca conseguiu se recuperar da ausência do neto, a quem ela criou como filho. "Ele era muito querido por todos. Entregava minhas costuras, era quem me ajudava. Sempre foi estudioso, tinha os defeitos dele, coisa de adolescente, mas nunca me deu trabalho", contou ela, que não pretende voltar à Vila Moisés. A avó do garoto lembrou que o grande sonho do neto era ser jogador de futebol. "Até teste na Europa ele chegou a fazer", comenta, sem disfarçar o orgulho.

 

Natanael tem dois irmãos mais novos, atualmente com 13 e 16 anos, que continuam sob os cuidados de Marina. O choro da costureira impulsiona soluços que desaceleram sua fala no momento em que lembra das condições do corpo do neto. "O braço estava dilacerado, estufado, os ossos à mostra. Meu menino, que só tinha ido na rua pegar uma pizza que a gente tinha pedido. No caminho ele ia encontrar Simone, a namorada, mas nunca mais voltou. Eu vi o corpo dele em uma foto, uma conhecida me mostrou", lamenta Marina, referindo-se a uma imagem do neto morto, já no Instituto Médico Legal Nina Rodrigues (IMLNR). A avó reconheceu o adolescente de cara porque Natanael morreu vestindo com uma bermuda que, Marina faz questão de lembrar, foi feita por ela mesma.

A dor e a saudade continuam presentes também para familiares de Evson Pereira, que teria completado 29 anos há dois meses. "O pior é que o aniversário dele é Semana Santa, ou seja, é uma data que acabou para nós. É sempre muito difícil, às vezes parece que estou dentro de um pesadelo, vou acordar e ele vai estar aqui", contou uma tia da vítima, sem dar maiores informações sobre o sobrinho. "É um caso que eu infelizmente já não tenho esperança que seja feita a justiça, prefiro deixar a alma dele em paz, não gosto de falar nisso. Mataram eles duas vezes, porque morreram como bandidos".  Isso porque a Polícia Civil chegou a afirmar que nove, das 12 vítimas, tinham ficha criminal. Três dias depois, no entanto, disseram que apenas dois deles já haviam sido presos.


 

 

 

 

 

 

 

 

 

                                                Natanael (à esquerda) e Evson: famílias garantem inocência

Fotos: Arquivo/CORREIO
Homenagem às vítimas
Homenagem às vítimas
Homenagem às vítimas
Homenagem às vítimas
Memorial
Foto: Reprodução/Marina Silva/CORREIO
Foto: Marina Silva/CORREIO

narrativa oficializada

A reconstituição da cena, que durou nove horas e foi realizada três meses depois, oficializou a narrativa dos policiais. Ou seja, o mesmo DPT que produziu os laudos utilizados pelo MP-BA para denunciar os PMs, entendeu, pós reconstituição, que houve troca de tiros. 

Os militares da Rondesp Central, tropa especializada da PM baiana, afirmaram que avistaram um grupo de seis suspeitos, com mochilas, próximo à Agência da Caixa Econômica Federal da Estrada das Barreiras. Os nove agentes disseram que, durante incursão na Vila Moisés, perceberam que não se tratavam de seis, mas de 30 homens armados, que atiraram contra as três guarnições.

 

Na época, o comandante da Rondesp Central, Agnaldo Ceita, afirmou que os PMs "reagiram de maneira proporcional à injusta agressão sofrida pelos policiais militares" e que "não há como, em uma troca de tiros, controlar quantas pessoas serão baleadas”.  No dia seguinte às mortes, foi apresentado à imprensa o material supostamente apreendido com os mortos.

 

Roupas camufladas do exército, 14 bananas de emulsão em gel que seriam usadas para explodir os caixas, 15 armas; sendo 12 revólveres 38, uma pistola ponto 40, uma pistola 45 e uma espingarda calibre 12; além de  5,7 kg de maconha, 1,5 kg de cocaína, 500g de crack, 24 celulares e  R$ 390 em dinheiro.

Para o agente de saúde Linsmar Vilas Boas, a versão beira o fictício. "Não foram nove policiais. Nove foram os que assumiram. Eram 11 viaturas, como é que foram nove policiais? Sabe o que é mais engraçado? Apenas um PM ter sido baleado, de raspão, por uma quadrilha especializada em assaltos a bancos".

 

O irmão da vítima também comentou que os celulares apresentados pelo Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP) eram quase todos iguais. "Meu Deus, eram quase todos do mesmo modelo. Isso não existe, nunca existiu", salientou.

 

 

 

O material também foi contestado no texto elaborado pela comissão do Incidente de Deslocamento de Competência (IDC), que permite ao procurador-geral da República, em caso de grave violação aos direitos humanos, solicitar, perante o STJ, a competência da Justiça Federal. “Roupas camufladas não apresentavam vestígios de tiros, nem de sangue, além de não trazerem perfurações que os tiros que atingiram as vítimas teriam causado nas vestes”, diz trecho do documento.  

 

Outro trecho aponta o fato de que “nas mãos de quatro vítimas foram encontradas partículas determinantes de disparo de arma de fogo, sendo que em duas delas os vestígios foram encontrados na mão esquerda, sem que haja confirmação de que tais vítimas fossem, de fato, canhotas”. O IDC acrescenta que no inquérito policial os projéteis que atingiram residências próximas são provenientes "das armas das vítimas", como forma de sustentação do alegado confronto. No entanto, ainda segundo o IDC, nenhum dos projéteis foi recuperado e periciado. 

Após concluir que os agentes foram recebidos a tiros, no que as polícias chamam de "auto de resistência" quando é legal que o agente do Estado mate, desde que a pessoa tenha resistido à prisão — a Polícia Civil encerrou o inquérito. Gatilho procurou a SSP para comentar as afirmações do IDC mas, até o fechamento desta reportagem, não havia recebido retorno.

 

 

Foto: Almiro Lopes/CORREIO

Infográfico: Tailane Muniz
Fontes: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) - Atlas da Violência 2018

cartilha para matar

Em entrevista a Gatilho, a socióloga, pesquisadora de temas ligados à justiça criminal e professora da Universidade Federal da Bahia (Ufba), Mariana Possas, afirmou que a Polícia Militar baiana é treinada sob "uma cartilha de matar". Graduada em direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC), e em ciências sociais pela Universidade de São Paulo (USP), a pesquisadora tem mestrado em direito penal (USP),  doutorado em criminologia (Universidade de Ottawa, Canadá) e pós-doutorado pelo Núcleo de Estudos da Violência, da USP (NEV/USP). Especialista em segurança pública, Possas defende a versão de que os 12 jovens foram executados. "A gente sabe que essas mortes, elas não são a maioria cometidas pela polícia, de fato, em um ato de legítima defesa. São frutos de uma ação de execução, propriamente dita".

chacina  do cabula é regra

A socióloga e ouvidora-geral da Defensoria Pública do Estado da Bahia (DP-BA), Vilma Reis, compartilha da mesma opinião. Para Vilma, que é militante e defensora dos direitos humanos para negros, mulheres e LGBTs, o episódio sangrento da Vila Moisés escancara a existência do racismo no estado mais negro do país. "Não foi exceção, é a regra. Mortes brutais e violentas. A interrupção de projetos de vida de pessoas que nem tiveram chance de pensar esse projeto. É exatamente parte de uma sociedade que, frente à ausência de policias públicas, sofre. Para toda essa gente, para os negros, a única resposta é o braço armado do Estado. E nós discordamos, e é por isso que estamos aqui na ouvidoria dando forças às mães, para que essas mulheres possam erguer suas vozes".

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

na ativa

Em nota enviada a Gatilho, a Polícia Militar informou que os nove agentes envolvidos na Chacina do Cabula, a princípio, foram afastados das atividades operacionais e submetidos a acompanhamento psicológico. Após o arquivamento do processo pelo TJ-BA, no entanto, a PM disse que a guarnição "retomou normalmente às atividades operacionais". 

 

Ainda conforme a corporação, os casos de mortes nas ações policiais são registrados na Corregedoria da Polícia Militar e, posteriormente, investigados. A reportagem questionou o número de mortes em decorrência de intervenção policial em 2017 e no primeiro semestre de 2018, mas não obteve resposta até o fechamento desta reportagem. Enquanto isso, os policiais seguem vestindo suas fardas e circulando no Cabula. Para eles, a Vila Moisés é a mesma de sempre. 

 

Leia íntegra da nota

"No início, os policiais militares foram afastados das atividades operacionais e submetidos a um acompanhamento psicológico. Após o processo ter sido arquivado pelo Tribunal de Justiça, a guarnição retornou normalmente às atividades operacionais. A Polícia Militar esclarece que qualquer ação que envolva auto de resistência é imediatamente registrada na Corregedoria da PM que, consequentemente, investigará a atuação dos profissionais de segurança pública para identificar se houve excesso e confirmar que tudo foi realizado no padrão policial militar.

 

As unidades 23ª, 48ª e 1ª Companhia Independente de Polícia Militar (CIPM) e da Companhia Independente de Policiamento Tático (CIPT)/Rondesp Central realizam as operações chamadas “Lado a Lado” e “Força Tática” na Vila Moisés, além da permanência de viaturas em pontos estratégicos da localidade. Rondas do Pelotão de Emprego Tático Operacional (PETO) são presentes na região para coibir ações delituosas. 

 

Quanto aos autos de resistência destes períodos, esta informação foi solicitada à Corregedoria e estamos aguardando a resposta".

*O título desta reportagem foi inspirado em um capítulo do livro Rota 66 - A História da Polícia que Mata, de autoria do jornalista Caco Barcellos.

Foto: Divulgação/Ufba
Mariana Possas - Especialista em Segurança Pública
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Foto: Lúcio Távora/Agência A Tarde
Vilma Reis - Ouvidora Geral da Defensoria Pública
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sobre nós

Agradecimentos: Arisson Marinho, Bruno Wendel, 

Clarissa Pacheco, Jorge Gauthier, Linda Bezerra,
Mariana Rios e toda equipe do Jornal Correio.

Alba Freitas, Davi Gallo, Edson Silva,
Henrique Oliveira, Kênia Borges, Linsmar Vilas Boas,
Lílian Lima, Mariana Possas, Ury Silva e Vilma Reis.


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O especial Gatilho foi produzido sob a orientação do 
Prof. Ms. Laércio Torres de Góes.

Reportagem e crônica: Tailane Muniz
Entrevista: Dener Gonçalves, Luiza Fabiane
e Tailane Muniz
Fotografia: Arquivo/Jornal Correio
Vídeo: Márcio Caetano
Edição de vídeo: Márcio Caetano
Logomarca: Jeferson Almeida
Edição de áudio: Tailane Muniz
Produção: Dener Gonçalves, Luiza Fabiane

e Tailane Muniz
Criação e desenvolvimento web: Tailane Muniz

Edição web: Tailane Muniz

Coordenação-geral e conceito: Tailane Muniz

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